Terça-feira, 14 de Novembro de 2006
VOZ NUMA PEDRA
Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento
Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgado me menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará diante dela»
Os pregadores da morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao
sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal
Mário Cesariny
Terça-feira, 7 de Novembro de 2006
"... a picture, incomplete yet not false, of the universe as Ts'ui Pen conceived
it to be. Differing from Newton and Schopenhauer, ... [he] did not think of time
as absolute and uniform. He believed in an infinite series of times, in a
dizzily growing, ever spreading network of diverging, converging and parallel
times. This web of time -- the strands of which approach one another,
bifurcate, intersect or ignore each other through the centuries -- embraces
every possibility. We do not exist in most of them. In some you exist and not
I, while in others I do, and you do not, and in yet others both of us exist. In
this one, in which chance has favored me, you have come to my gate. In another,
you, crossing the garden, have found me dead. In yet another, I say these very
same words, but am an error, a phantom."
Jorge Luis Borges, The Garden of Forking Paths (From the Preface of "The
Many-Worlds Interpretation of Quantum Mechanics", by Bruce DeWitt)
E um dia antes de jantar disseste que querias visitar a tua casa pela última
vez. Ao chegares todos estavam já sentados e tu choraste, e todos choraram
contigo em silêncio. O último choro. Depois olhaste cada um serenamente para
que todos pudessem contemplar a tua morte nos teus olhos. Para que a vissem de
frente. Há quem procure um sentido durante toda a vida e tu encontraste-o ali,
naquela mesa, entre os teus irmãos, filhos e netos.
Na véspera pediste que matassem um dos teus porcos para que naquele dia o
pudesses oferecer a todos. As morcelas de arroz, o cozido, a farinheira. E
todos comeram contigo pela última vez. No fim do almoço levaram-te lentamente
para o sofa, e ali ficaste deitada toda a tarde, entre crianças a brincar,
futebol na televisão, visitas de última hora. Não podia faltar ninguém.
Esperaste pacientemente pelo último dos teus irmãos que chegou tarde.
Pegou-te na mão e assim ficou durante muito tempo. A segredar-te qualquer
coisa, a rir, a despedir-se de ti.
No dia em que morreste na tua cama, rodeada pelos teus filhos, deves ter pensado
como tudo valeu a pena. Morrer assim tão acompanhada, tão amada. Na vida e na
morte... Até que nos reencontremos contigo noutra esquina do Multiverso,
talvez naquele em que estaremos todos vivos para podermos saborear a tua sopa
mais uma vez. E na minha mente quântica posso operar esse milagre agora,
enquanto escrevo, não preciso de esperar por outra existência.
Falar contigo agora é também falar comigo.
Até sempre Matriarca.